terça-feira, 4 de junho de 2013

da Medusa

2. Boa Constrictor

Acordo com gotas de chuva morna.
morna?
a cabeça do chuveiro a cuspir-me em cima.
a minha cabeça roda, um delírio. paredes da banheira.
zonza.
sinto uma semi-consciência mais potente que a minha, que me tolda, que me agrilhoa a um estado que cada vez mais não é o meu.
o que estou a fazer aqui?

relâmpagos atravessam-me a mente, que confusa, não consegue exceder o clichê.
um bar enevoado pelo fumo. quantidades não identificadas de tequilla, só podia ser tequilla. é o que ela bebe, nada mais, -adormeci pela bebida ou pelo comando dela?- formas cada vez mais confusas ao fundo machos talvez- um boi gigante a chamar-nos um taxi
?!!!!
movimento na porta da casa de banho. a adrenalina do possível perigo parte as algemas do filosofar pela noite perdida e da semi-consciência alheia. sinto algumas outras irmãs insinuarem-se também.
posição de ataque, quem me dera ter veneno na boca!!!!

E então entra uma figura bem conhecida semi-nua pela porta, que nenhuma de nós tem coragem para morder.

Reconheci-o pela sobrancelha cerrada mas curta, e aquele relance metálico das hastes no retrovisor.
Nunca pensei que as entradas fossem tão pronunciadas, distraiam. Os olhos pareciam dois pequenos pontos negros numa confusão de tronco nu, brilho da pele e lentes de ampliação.

Falou calmamente, como se não nos visse - Não tens nada com que te preocupar, o sedativo já deve estar a  funcionar, embora não precises, bebeste bastante. Parece-me que o fígado não se aproveita, mas ficares sem um rim não te vai fazer muito mal - um sorriso fino, duro, cortou-lhe a cara.

O corpo moribundo da Medusa meio enfaixado por roupa ensopada estava estendido na banheira, de costas para cima. Um espasmo de compreensão. Por isso é que conseguia ver tudo sem dificuldade!
O pânico tomou-me. Sentia as minhas irmãs algures, emiti um chamado mental compulsivo, mas elas estavam cada vez mais inanimadas à medida que o sedativo que trepava pelas suas terminações nervosas.
Seria eu a única intocada pelo drunfe?
E comecei a senti-los. Os grilhões.

Outro brilho metálico, desta vez na mão. A lâmina reluzia sob a lâmpada implacável da divisão.
E subitamente apercebo-me de todos os meus poros, de toda a minha real e inútil pequenez. Para que sirvo eu, a negligenciada constrictor, para quem a vida se move em marcha-atrás? Nem veneno tenho -ele move-se lentamente, sem me ver, sem perceber - nem poder muscular, nem posso fugir, Porra! mordi-me na língua!!...
mordi-me...
grilhões... névoa... sinto-me desfale - e reúno todas as minhas forças, que correm, que fogem, e abocanho a omoplata da Medusa. Um chamado que ecoa pelo túnel até antes de um sentido, fraco em direcção a um alvo longínquo na inconciência. E é meio a dormir que vejo toda a perspectiva a mudar e pelo olho da ligação mental sinto uns olhos desprotegidos abrirem-se. E o ar de surpresa marmórea do taxista quando encara os místicos olhos verdes da Medusa.

da Medusa

1. Boa Constrictor

Como abertura a este discurso "in media res", posso-vos dizer que nunca fui daqueles seres que têm uma boa perspectiva da vida. Não é que seja negativista por natureza, mas moro na nuca de um "monstro" mitológico, pelo que é verídico afirmar que sou sempre apanhada de costas por tudo o que me acontece.

Não temos muita liberdade - nós, as habitantes da cabeça da Medusa - pelo que tivémos de aprender a perceber o mundo pelo espírito santo de orelha. No mundo da perspectiva fixa, o diz-que-diz viperino é o prato do dia. Somos seres dentro de um ser, condenadas a aturarmo-nos umas às outras pela eternidade. um estranho condomínio ambulante de personagens que pouco têm em comum para além de um corpo.
Mas chega uma altura em que nem o "diz-que-diz" é fiável, e temos de ver as coisas com as nossas próprias pupilas verticais para acreditar.
Nesta noite decidi tomar as rédias da narração daquilo que também é a minha vida.

Abri espaço entre a Coral e a Naja e ancorei-me no pescoço, no meio das sombras, a ver novelos de fumo do bar desenrolar-se como finos dedos fantasmagóricos, hipnotizantes.
Constatei aquilo que já suspeitava - o silêncio pesado das minhas irmãs personificado num rastro de copos de shot sobre a mesa, carcaças de lima e um saleiro algures no meio da matança.

Perto da minha cabeça, a Cascavel mordeu em seco. Não era uma ameaça, mas sim o sabor do papel de música a instalar-se involuntariamente sobre a língua acompanhado do assentar de arraiais de uma vaga irritação.
Senti uma reverberação de pensamentos atravessar-me. Sentimos todas, como um arrepio, apenas uma sugestão. Mas a massa palpitante dos nossos corpos age sempre em conformidade ao chamado da Medusa, como se não importássemos. Uma onda de desolação abafou-me.
Não é incomum sentir-me desolada, presa que estou num corpo serpentino que nunca irá a lado nenhum, e que o máximo de acção que tem é ameaçar uma das irmãs de mordidelas. Quem me dera poder provar um rato!!
Não, não era incomum em mim a desolação, a desilusão. Mas vivo em simbiose com uma monstra bipolar pelo que por vezes as sensações sufocam-me e não sei o que fazer.
Parecia um daqueles dias em que a nossa sombra era demasiado pesada para um só corpo carregar. Como se nem o Atlas conseguisse processar tal dimensão. Tal solidão. Tal tristeza.

Não sabia o que fazer. Pelo que compreendi a necessidade de anestesia.
Penso que todas o fizémos.
Então ela bebeu.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Um.

Abri os olhos na Terra de Ninguém.
O céu estava polvilhado com todas as estrelas do firmamento, diamantes sobre negro que se consumiam e revoltavam nelas próprias. Sem vontade abdiquei do aconchego dos limos e das carícias dos caranguejos no meu cabelo e emergi do canal dos sonhos.
Olhei um "nocturno coração", todo ele paz, sombra, e pirilampos a iluminar o caminho. 
Um corvo cambaleou num voo negro e pousou no meu ombro, rasgou-me a pele nua e molhada. Não quis saber. 
Crocitou-me ao ouvido "Novas. Terrenos do Sul destroçados."
Suspirei, sem emoção. O corvo partiu, penas a rasgar o silêncio.

Encaminhei-me calmamente para os campos de Marte, as botas a abrir caminho na erva alta. Devia ter calculado que uma turbulência qualquer poderia causar estragos aí. Aconcheguei o manto à roupa, ainda húmida, um gesto mais pelo hábito do que pela necessidade.
O que vi partiu-me o coração. Uma convulsão saiu da Terra e engoliu os jardins que ardiam em protesto à violência, piras engoliam as flores e a erva e as oliveiras gemiam e crepitavam, ainda agachadas mas sem defesa.
Achei de certa forma desconcertante um protesto no meio de um campo belicoso por nome, por ser despropositado.
No coração tem que haver um lugar para tudo, não é nem deve ser um lugar esterilizado, mas convém que seja organizado. Estas brincadeiras pacifistas tinham o seu lugar e o seu tempo. Mas estando desprovida de humor asfixiei as chamas entre os meus dedos. Queria chorar, mas não tinha emoção. 
Já me bastava ter um Sátiro à solta que volta e meia punha tudo em pantanas. Mas isto.. isto era algo totalmente diferente. Era guerra aberta. 

Guerra.
Franzi um sobrolho. 
"Cérebrus". Mal sussurrei o nome, três cabeças materializaram-se ao meu lado. "O Guerra foi solto. Temos que elaborar um plano de contingência."
"Como sabes que foi ele?"
"Ele nunca foi muito subtil. Como produto do meu subconsciente penso que até tu te apercebes da alegoria foleira do campo de Marte".
Três rosnadelas em resposta.
A fraca sensação do "mais está para vir" abateu-se entre nós. Conseguia sentir o palpitar assustado de Cérebrus, o chefe de segurança, mas não conseguia corresponder. Cabe-lhe o trabalho de ficar assustado, com medo, porque é ele o Anticorpo que protege o meu mundo. Eu sou apenas a observadora.

Retirei-me para equacionar o problema, enquanto as três cabeças ladravam ordens ou salivavam.
Havia um cerco a decorrer. Isso não me assustava porque aquele Guerra é um menino, e toda eu me envolvo em selva que antecede as muralhas. Os monstros que a patrulham irão dar cabo dos seus exércitos de metal.
 Mas preocupava-me o destino dos pequenos heterónimos da minha alma e por isso dirigi-me à Árvore-Biblioteca. Tudo estava bem, um silêncio calmo envolvia a noite. A Árvore estava iluminada com pequenas lanternas, que me ajudaram a encontrar o que queria.
Abri o livro da Alice, e invoquei a Mally, a ratinha esgrimista. Disse-lhe para dispensar a vénia e enviei-a para as Terras do Este, para assegurar que as  planícies eram avisadas de que algo iria chegar. Já me bastou perder o campo de Marte, as terras de Ceres ficariam imperturbadas.
Abri Tolkien e invoquei as Águias, que tudo viam. A vénia foi minha. Pedi-lhes para avisarem as Montanhas do Norte, para que protegessem as terras mais queridas do meu coração. Os seus chamados seguramente acordariam as fadas e os centauros, os sátiros, os ents e os outros seres das florestas. Juntos iriam proteger a terra.
Para o Oeste invoquei uma das minhas memórias mais queridas. Para isso desci à sala que fica por baixo da Árvore, a sala da saudade. Não precisei de luzes no negro, a sua forma elegante iluminava, bruxuleante, a divisão. Sentei-me no chão à frente dela, e ela olhou-me com os seus olhos verdes líquidos, fantasmagóricos.
Lilith compreendia. O vapor do seu corpo alongou-se num espreguiçar e avançou para as terras de Oeste. Ela é a voz da calma e da segurança, e os felinos irão segui-la sem medo.

Atordoada, voltei para o jardim. Abri mais um livro.
Martin emprestara duas das figuras mais impressionantes ao meu imaginário. Drogon veio primeiro. Asas pretas sobre o negro da noite, todo ele um pleonasmo sob o céu estrelado. Dois olhos ardentes à espera. Toquei-o no peito e ele percebeu o que lhe era pedido. O meu coração não cederia, seguramente. A enorme deslocação de ar incomodou as lanternas, que vacilaram nos seus postos, mas mantiveram-se corajosas na noite.
Nymeria surgiu depois da partida do dragão. A loba gigante veio a trote, a aura régia que emanava fez as pequenas criaturas que habitavam a Árvore encolherem-se de respeito. O seu olhar de sangue era frio, tinha fome de morte. Baixei o joelho.
"Minha Rainha".
Senti os seu olhar sanguíneo beber as minhas intenções. Uivou. Um vento gelado do Norte levantou-se, um beijo do Inverno que combinava com a noite. Um coro de vozes caninas respondeu ao longe. Partiu, a forma alva contra a noite de ébano, um fantasma de carne e desejo que tinha um trabalho a fazer.

Trepei a uma das torres, braços nodosos e folhas que se entrançavam. Estava entretida com a subida, cansada e a tentar distinguir o caminho no escuro e não me apercebi da sua presença. Foi um sobressalto.

"Podias ao menos avisar." lançou ele "Sabes que te posso ajudar."
"Não sei porque deva avisar-te de coisa alguma. Também não me avisas quando me roubas as minhas coisas. Não sei em que medida é que me poderias ajudar com este problema." Não trazia a caixa.
"Não achas que poderias resolver o problema mais facilmente se isto estivesse melhor iluminado?" um sorriso matreiro espalhou-se nas suas pequenas feições, mas não chegou aos olhos. Estava preocupado, a pequena ruga entre os olhos traiu-o.

Suspirei. Equacionei o facto de que acima de tudo era um sátiro jovem, e que quem tem que pesar as consequências das suas sugestões vazias sou eu. Mordi a língua para não lhe dar a resposta que merecia, por um lado porque me compadeço. Não é fácil o trabalho dele. Se existe nesta Terra de Ninguém é porque tem um propósito, e eu batalho-o com todas as forças que tenho. Não é pelo seu feitio rezingão e sarcástico que bebe muito do meu. Mas sim pelo trabalho que tem a fazer, que uma e outra vez só me trouxe dor.

"Vejo que já não andas com a minha caixa atrás de ti." repliquei. Tive como resposta um ar de pena que me desorientou.
"Está demasiado cheia e pesada e não consigo andar com ela atrás de mim como antes. Não te preocupes, está bem guardada."
"E esse ar de pena é de quê?"
"Sabias que a dilatação do coração é um problema sério?".

Uma gota de água aterrou na ponta do meu nariz.
Troquei os olhos de surpresa, e a resposta fugiu-me da ponta da língua. Olhei para o Sátiro, que tinha um ar tão estupfacto quanto o meu, no meio da chuva impossível. Olhei para cima. Uma nuvem laranja, gigantesca, qual disco voador saído de um quadro de William Blake pairava sobre as nossas cabeças, a Árvore Biblioteca, as planícies, as florestas. Materializara-se não sabíamos como.
E em resposta, o meu corpo metafísico deixou de responder. Senti-me aprisionada num cenário que não era meu, engolida pela impossibilidade das opções. E eu imaginária desfaleci, o meu corpo deslizou entre o ar e a chuva poluída e as folhas e os galhos, pairou uns segundos e despenhou-se contra o chão.




domingo, 9 de setembro de 2012

Metereologia

Fiapos de nuvens pairam sobre a cidade de Tomar, ofuscando o Sol. 

Saí da Muralha exterior e olhei por cima do ombro. O calor extremo tão perto da minha pele era quase agradável, como se a sua força, de mansinho, se esticasse até ao limiar do meu sentir. Até o crepitar violento era atraente. Virei-me para ficar de frente, admirar as labaredas a lamber por camadas a Estrutura. Era tanto ao quanto fenomenal, a noção de que algo tão inédito e inóspito pode morar no coração de alguém. Depositei um beijo no nariz do Cérebro (o do meio), e uma festa nas cabeças laterais para não sentirem inveja, meti as chaves no bolso encaminhei-me para a estrada. 

Os sacos do lixo pesavam-me na mão. É uma caminhada curta até aos caixotes, e consigo observar alguma paisagem, o que é relaxante, ajuda-me a respirar.. Para mim, é uma terra um pouco insípida, que só acorda verdadeiramente com a chegada da chuva. Tirando a Mata e o Rio, cheios de vida e do suave restolhar do movimento das folhas entre a luz e a sombra, tudo o resto se resume ao retorcido de oliveiras, que se agacham sobre si próprias, como se a defenderem-se de não-sei-bem-o-quê, e à enormidade de cardos perdidos no meio da erva seca e alta. Mas não é tudo "mau". Mesmo no meio do insípido nascem pequenas flores, delicadas e exuberantes. É como se Tomar nos piscasse o olho e a sorrir nos dissesse "toma atenção às pequenas coisas, há sempre boas surpresas para descobrir".

Ao longe vejo a Nuvem-Mãe, ominosa. Mas sei que é só uma ameaça de chuva. Não haverá um acordar tão cedo. Aqui hiberna-se no Verão, com as cigarras a gritar tanto que parece que vão explodir, e o calor surdo que nos seca por dentro. Volto da minha tarefa corriqueira para a prisão domiciliária. É complicado perspectivar coisas sempre do lado de dentro. Pergunto ao Cérebro houve algum problema na minha ausência: "O sátiro foi visto com a Caixa debaixo do braço."
Rosno e sai-me um "Porra. Sempre a mexer onde não deve." Atiro três bolachas em forma de osso, pela atenção.

As nuvens comprimem-se mas o Sol não aparece. O seu calor está lá, dedos longos e finos que se espraiam pela distância, sinto-os no meu cabelo. Passo pela Muralha de Fogo, entro no pátio interior. Três muralhas depois, chego ao estranho edifício que compõe a minha morada. Trepo pela Árvore-Biblioteca, acomodo-me num ramo bem alto. Aqui não há vertigens. 
À minha volta sobem e descem os discos elevadores, uns com transeuntes e outros vazios; e lá na base da colina vejo o Canal onde mergulho quando vou dormir. 
Deito-me no ramo ( naturalmente ergonómico) e vem o Vento de Norte e acaricia as folhas, e abre caminho pelos fiapos de nuvens. Vejo o mistério dos beijos dourados do Sol nas folhas, e como elas se esticam, de mansinho para os receber. Uma lágrima foge-me solitária e cai no chão. Imediatamente os elevadores páram, a água silencia-se. O restolhar continua, em versão "mute". 

 O pequeno sátiro materializa-se no ramo por cima do meu, olhos maliciosos nos meus. Desafia o meu desalento silencioso e abana uma pequena caixa, com um som mole a emanar a cada movimento. Semicerro os olhos: "Não sei quem te deu permissão para andares a brincar com isso." 
-"A negação é uma coisa muito feia, sabes."
-"Cala-te. Não sabes nada, tu. Cada vez mais sei esperar."



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Arabella

Um Pêndulo de pressão agitava-se na minha cabeça.
Era como uma fila interminável de sensações que compõe uma toda emoção. Complexa. Tensa. Estas amontoavam-se e acotovelavam-se para lutar contra a compressão, uma vã tentativa de expansão. Vã tentativa, de facto, chegada a este ponto, só haveria compressão até ao alívio, fraco, tímido, silencioso. Doloroso.
Tentei abstrair-me destes pensamentos lentos e transbordantes por uns momentos, e meio cega pela dor, debrucei-me e observei a pequena cena que se acomodava sobre a precária mesa de bordo à minha frente.
Através de alvas janelas, a Senhorinha Arabella estrebuchava por qualquer coisa, na sua minúscula sala. Pequeníssimas chávenas do serviço de chá das Índias Ocidentais voavam sobre a peruca poeirenta do diminuto futuro marido, enquanto ela num sibilar quase inaudível bufava de indignação, a pequenez das suas bochechas manchadas de pó-de-arroz traídas pelo púrpureo da neura que as tingia. A mosca do olho já meio esborratada, uma rede de gotas  a preencher os sulcos da sua testa gorda, pequena e rabugenta.
Fiz um esforço para não me rir, dado que se ela se apercebesse da atenção que lhe dava, certamente iria levantar o queixo e zumbir dali para uma torre qualquer, abandonando-me à cegueira e à dor.
Hoje estava esfomeada por entertenimento, não pelo entertenimento em si, mas pela necessidade de ocupação vã. Tinha que esquecer.
Observar os liliputianos, que eram sim diminutos mas com carácters extremamente firmes e complexos para uma tão acentuada pequenez, era como observar granadas a quem foi retirada a cavilha. As suas formas comprimidas não conseguiam, por vezes, lidar com a acumulação de pressão e tinha de haver um escape.
Ora o escape da Senhorinha Arabella tratava-se aparentemente de tiro ao alvo à peruca do noivinho bafiento com frisbees de porcelana fina.
Senti-me desfalecer no meio da Tontura, e decidi trôpegamente embrenhar-me no enredo simplório. Tentei deitar um ouvido à conversa, no meio do ardejar de sangue a correr de fundo.
Aparentemente o noivinho, Sor Earel, tinha sido apanhado com uma das comprimidas damas de companhia de Arabella em cortesias não muito próprias de um salão de chá da corte. Ora Arabella não era pessoa de de ser egoísta com brinquedos, e sabia perfeitamente que se o noivinho se sentisse de alguma forma insatisfeito ou inseguro viria comer à palma da sua minúscula e perfumada mão. Não era isso de forma alguma que a havia irritado.
Era o facto que o noivinho havia roubado o seu pequinês - e quando digo pequinês digo "a rondar o microscópico" - para incluir na sua nefasta apresentação.
Abafei uma gargalhada dorida. Arabella olhou para cima, perscutou a escuridão com pontos azuis muito vivos e penetrantes no meio dos caracóis loiros . Mas não me viu. Mas farejou perigo e dando uma canelada no noivo anão, deu por terminada a confusão. Fiquei sem espetáculo, espraiada no lusco-fusco, apenas iluminada pela presença velada das janelinhas da casa de bonecas que pretendia passar por palácio.
Sentia que o mundo estava de pernas para o ar, e de uma forma profundamente errada, circulava na direcção correcta.
Persiste ainda a sensação de opressão, de tensão, mas agora na boca do estômago. De Revolução. De Revolta.
Aquiesci à convulsão que tomou conta de mim, e ignorando o ardor, fiquei apenas a contemplar o negro. Deixei-me consumir por qualquer coisa que ainda estremecia dentro de mim, mas que firmamente matei. Asfixiei na terra negra, e por fim, como um remate de algo há muito esperado, afoguei-me em lágrimas de alívio. O choro veio fraco e tímido. Rapidamente galopava em força, mas eu asfixiei-me e ele manteve-se silencioso.
Acordei o Poder dentro de mim, agradeci as Graças que me deram, transformei as lágrimas em dentes-de-leão, pirilampos e flores-de-cerejeira. Gastei as minhas parcas, cansadas energias para transformar aquela opressão, compressão de dentro de mim em expansão, em gratidão, em luta. Expandi-me, e senti o sabor do amargo, mas em torno de mim giram os pirilampos, e dentes-de-leão e flores-de-cerejeira, marca do Poder que embalo, e ao qual me agarro por dentro.
Visto mais do que roupa, guardo feras em mim, no meio da agitação, calo-as, tento amansá-las.
E tento, por tudo, parar o Pêndulo que se agita dentro de mim, e que não me deixa pensar.




domingo, 17 de junho de 2012

"Num reino ao pé do Mar"

Hoje deixei o meu lar sob céus de chuva, que feita copiona reproduziu o meu estado de espírito.
Sempre gostei da chuva. Sempre me deu uma sensação boa e quente de pertença. Mas não hoje.
Hoje ela banha meticulosamente o verde do Norte. Eu aregalo bem os olhos, vejo bem tudo, e tatuo tudo no meu coração para que permaneça mais tempo. Tento, como Grenouille, embebedar-me das cores da minha terra, o verde, o cinza, o castanho, e embalo-me nessas sensações e nesse sentimento.
Mas entre a saturação, o cansaço e a saudade, a névoa da asfixia vai subindo, e subindo..
No meio do nevoeiro, tropeço e apalpo, cega à paisagem que corre e se afasta de mim, o meu cabelo húmido a colar-se à cara, um enorme frio nos ossos e uma sensação de estranheza a instalar-se. Como se estivesse deslocada mesmo nos lugares que o meu coração ama.
O meu coração ama... o meu coração ama estes rios e este Mar que fazem parte de mim, as águas que me banham e que abraçam as minhas lágrimas, como se de irmãs se tratassem.
O vento frio a saber a areia vergasta o nevoeiro e amestra-o, e ele diminui de tamanho temporariamente, mas não para sempre. A asfixia acalma e respiro parcamente outra vez, em golfadas rápidas e magoadas.
Retorno à terra do Sol, sem sombra e implacável e deixo as terras do Mar e as suas folhas, e os seus verdes, e os seus campos. Guardei as estrelas-do-mar e os limos guardei-os na gaveta para usar no meu retorno, e os caranguejos... aninhei-os no meu coração, porque me estrangulam de saudade e não me deixam respirar.
Hoje sei que vou dormir sobre a terra quente e sem sombra do Sol, e entristeço-me de felicidade, pois vou sonhar com o Reino que deixei ao pé do Mar...

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Blinding

olhou em frente. a luz dourada batia nos talos e nas folhas verdes do campo de milho, num jogo de luz e sombra mutante, hipnótico, bruxuleante. abanavam-se que nem pavões. a fita que lhe prendia o cabelo soltou-se, e ele agitou-se livre, turvando a visão.
permitiu-se um meio sorriso, como se se tratasse de uma private joke entre si e a natureza que a rodeava. como se só ela soubesse, sentisse o segredo das coisas.

olhou para baixo. os pés no ribeiro, os dedinhos no meio da lama, a sensação de gelo doce a subir-lhe pelas pernas, a ensopar a barra do vestido.
uma sensação gelada e doce de pertença.

saltitou entre os quartzos e os feldspatos. abraçou as árvores, deixou que as ninfas e as fadas lhe penteassem os cabelos no meio da relva entre conversas secretas e sorrisos.

aquela relva captivante.
um mar verde, novo, tenro. até aos joelhos, com ondas e luras de coelheiras, e flores pequeninas, tímidas, a espreitar por entre a segurança das folhas. coroou-se num laivo de infantilidade feliz, a roubar as flores às abelhas ao deitar-hes a língua de fora.
o seu vestido a dançar, livre e as folhas das árvores ao vento, num restolhar, a chamá-la de volta, a chamá-la de irmã.

de súbito uma sensação de vazio, um calafrio.
olhou para a esquerda.
um caminho com brumas, estreito, escuro, longe da luz coada. o mistério a piscar o olho, contra a segurança do mundo do Sol e da primavera.

desceu a ladeira.

a respiração pesada, os pés frios. o gelo já não era doce, era um gelo de estranheza, mas e daí, ali estava porque assim o escolheu.
a descida parou bruscamente, numa parede de espinhos, as silvas a agarrarem-lhe o vestido, um braço ao alto a proteger-lhe a cara das fagulhas e dos galhos, vergastado, vermelho e rosa-pele.

olhou para baixo.
sem opção, gatinhou pela abertura do trilho dos javalis.

a respiração curta e grossa. as pedras a pressionarem-lhe de forma magoada as mãos, a quererem entrar-lhe na pele e fazer parte de si. repeliu-as com um esfregar. o trilho acabou numa clareira, a luz coada já baixa, a pintar o chão de sangue e trevas. sentiu o frio estranho crescer dentro de si.
respirou o medo.

a clareira, rodeada de espinheiros e pinheiros altos, culminava numa pequena elevação, e a coroá-la em contra-luz, o Carvalho-Homem. os seus olhos baixos, tristes.
os seus cabelos castanhos, de folhas surpreendente largas, redemoinhos de galhinhos, quais caracóis.
ainda não se tinha apercebido que ela estava ali. a sua face de madeira, rija, seca, e os braços ao alto, como que a pedir a chuva que nunca veio.

respirou um sopro de coragem, a medo - correu para as raízes.

parou a centímetros.

olhou para cima, diminuta, para aquela majestade imperturbável e chamou "Olá?" - não obteve resposta.
olhou em volta. chamou e voltou a chamar, e a Árvore, serena, ignorou-a.
sentiu-se frustrada com aquilo. era de esperar pelo menos alguma reacção, mas nem os seus cabelos reagiam ao vento que rugia nas copas das outras árvores. como se fosse algum buraco negro de indiferença, o que magicamente o ocultava do resto do mundo. uma ovelha não negra, mas verde e castanha, desproporcionada, no meio da carneirada.
sentiu-se um bocado parva. não sabia muito bem o porquê daquele Portal se ter aberto, nem o porquê de estar Ali.

o crepúsculo sangrou e morreu, e a noite abateu-se.
arrependeu-se de não ter trazido casaco. olhou em volta, num esforço de desistente mas não encontrou a lura por onde entrou na clareira. estava presa ali!!!! bufou de neura. quando descobrisse quem tinha aberto o Portal ia mandar duas postas de pescada ou três para o ar.

decidiu que o frio e a fome eram demasiados para conseguir pensar numa estratégia de escape daquela situação. assim, reuniu os fetos que consguiu naquele preto sufocante da noite e fez um ninho, perto das raízes do carvalho. dispôs os cabelos sobre os braços e rezou para que quando a manhã viesse ainda tivesse dedinhos dos pés.
o cansaço raptou-a num sono leve:

deu consigo num sonho similar à sua realidade, exceptuando o facto de que tinha trazido sapatos e um casaco como devia ser. riu-se secretamente do seu subconsciente ser mais inteligente do que o seu consciente.
o som de asas ecoou-lhe na mente.

olhou para a Árvore.

no sítio onde estavam os olhos tristes abriram-se olhos de mocho. um bico cresceu por entre as folhas e piou-lhe: "tens que lhe dar algo que nunca teve, se queres que o feitiço se desfaça"

acordou bruscamente. sentiu-se enormemente cansada, como se tivesse caminhado eternidades para abrir os olhos. e quente, sentiu-se quente. mesmo sendo noite negra, noite pesada, descobriu que via razoavelmente. a lua brilhava lá longe e as línguas de luz prateada beijavam a clareira.

decidiu procurar o que era suposto ser encontrado ali. o que era suposto encontrar... lembrou-se do mocho:  algo que nunca teve...
a Árvore? era suposto dar algo a uma Árvore? mas como é que devia saber o que é que uma Árvore nunca teve???

explorou então a pequena clareira. seixos rolados brancos, uma depressão funda cortada no meio do chão.. um ribeiro antigo? alguma coisa castanha, com um ar de que já foi de pele a sobressair no meio das ervas... espera lá..

esgravatou a terra com os dedos.
um sapato? olhou para a frente, para as raízes da Árvore.. uma delas dividia-se em cinco galhos mais pequeninos, e a bifurcação era achatada... seria possível que...

correu para a frente do Carvalho. chamou de novo. e de novo. percebia agora o Que a movera ali. não o Porquê, mas isso não era essencial agora. sentiu-se aflita, com uma sensação de opressão crescente no peito. ajoelhou-se em frente à Árvore, sem saber realmente o que fazer.
olhou em volta.
não via nenhuma saída dali, e acima de tudo não via forma nenhuma de ajudar o Homem-Carvalho que ali jazia, imperturbável. sabe-se lá a espera interminável. as eras que havia passado ali sozinho.
sentiu-se a encher-se de profunda compaixão pelo Homem.

trepou por um dos pés e sentou-se naquilo que se apercebeu ser uma coxa, e abraçou-se ao tronco.
"pobre Árvore" murmurou "pobre Homem".
sentiu algo húmido cair-lhe na testa.

olhou para cima.

a Árvore chorava!!!
e houve qualquer coisa naquele toque, alguma estranheza familiar que começou a fazer sentido. e então... e então... pôs-se em pé..