olhou em frente. a luz dourada batia nos talos e nas folhas verdes do campo de milho, num jogo de luz e sombra mutante, hipnótico, bruxuleante. abanavam-se que nem pavões. a fita que lhe prendia o cabelo soltou-se, e ele agitou-se livre, turvando a visão.
permitiu-se um meio sorriso, como se se tratasse de uma private joke entre si e a natureza que a rodeava. como se só ela soubesse, sentisse o segredo das coisas.
olhou para baixo. os pés no ribeiro, os dedinhos no meio da lama, a sensação de gelo doce a subir-lhe pelas pernas, a ensopar a barra do vestido.
uma sensação gelada e doce de pertença.
saltitou entre os quartzos e os feldspatos. abraçou as árvores, deixou que as ninfas e as fadas lhe penteassem os cabelos no meio da relva entre conversas secretas e sorrisos.
aquela relva captivante.
um mar verde, novo, tenro. até aos joelhos, com ondas e luras de coelheiras, e flores pequeninas, tímidas, a espreitar por entre a segurança das folhas. coroou-se num laivo de infantilidade feliz, a roubar as flores às abelhas ao deitar-hes a língua de fora.
o seu vestido a dançar, livre e as folhas das árvores ao vento, num restolhar, a chamá-la de volta, a chamá-la de irmã.
de súbito uma sensação de vazio, um calafrio.
olhou para a esquerda.
um caminho com brumas, estreito, escuro, longe da luz coada. o mistério a piscar o olho, contra a segurança do mundo do Sol e da primavera.
desceu a ladeira.
a respiração pesada, os pés frios.
o gelo já não era doce, era um gelo de estranheza, mas e daí, ali estava porque assim o escolheu.
a descida parou bruscamente, numa parede de espinhos, as silvas a agarrarem-lhe o vestido, um braço ao alto a proteger-lhe a cara das fagulhas e dos galhos, vergastado, vermelho e rosa-pele.
olhou para baixo.
sem opção, gatinhou pela abertura do trilho dos javalis.
a respiração curta e grossa. as pedras a pressionarem-lhe de forma magoada as mãos, a quererem entrar-lhe na pele e fazer parte de si. repeliu-as com um esfregar. o trilho acabou numa clareira, a luz coada já baixa, a pintar o chão de sangue e trevas.
sentiu o frio estranho crescer dentro de si.
respirou o medo.
a clareira, rodeada de espinheiros e pinheiros altos, culminava numa pequena elevação, e a coroá-la em contra-luz, o Carvalho-Homem. os seus olhos baixos, tristes.
os seus cabelos castanhos, de folhas surpreendente largas, redemoinhos de galhinhos, quais caracóis.
ainda não se tinha apercebido que ela estava ali. a sua face de madeira, rija, seca, e os braços ao alto, como que a pedir a chuva que nunca veio.
respirou um sopro de coragem, a medo - correu para as raízes.
parou a centímetros.
olhou para cima, diminuta, para aquela majestade imperturbável e chamou "Olá?" - não obteve resposta.
olhou em volta. chamou e voltou a chamar, e a Árvore, serena, ignorou-a.
sentiu-se frustrada com aquilo. era de esperar pelo menos alguma reacção, mas nem os seus cabelos reagiam ao vento que rugia nas copas das outras árvores. como se fosse algum buraco negro de indiferença, o que magicamente o ocultava do resto do mundo. uma ovelha não negra, mas verde e castanha, desproporcionada, no meio da carneirada.
sentiu-se um bocado parva. não sabia muito bem o porquê daquele Portal se ter aberto, nem o porquê de estar Ali.
o crepúsculo sangrou e morreu, e a noite abateu-se.
arrependeu-se de não ter trazido casaco. olhou em volta, num esforço de desistente mas não encontrou a lura por onde entrou na clareira. estava presa ali!!!! bufou de neura. quando descobrisse quem tinha aberto o Portal ia mandar duas postas de pescada ou três para o ar.
decidiu que o frio e a fome eram demasiados para conseguir pensar numa estratégia de escape daquela situação. assim, reuniu os fetos que consguiu naquele preto sufocante da noite e fez um ninho, perto das raízes do carvalho. dispôs os cabelos sobre os braços e rezou para que quando a manhã viesse ainda tivesse dedinhos dos pés.
o cansaço raptou-a num sono leve:
deu consigo num sonho similar à sua realidade, exceptuando o facto de que tinha trazido sapatos e um casaco como devia ser. riu-se secretamente do seu subconsciente ser mais inteligente do que o seu consciente.
o som de asas ecoou-lhe na mente.
olhou para a Árvore.
no sítio onde estavam os olhos tristes abriram-se olhos de mocho. um bico cresceu por entre as folhas e piou-lhe: "tens que lhe dar algo que nunca teve, se queres que o feitiço se desfaça"
acordou bruscamente. sentiu-se enormemente cansada, como se tivesse caminhado eternidades para abrir os olhos. e
quente, sentiu-se
quente. mesmo sendo noite negra, noite pesada, descobriu que via razoavelmente. a lua brilhava lá longe e as línguas de luz prateada beijavam a clareira.
decidiu procurar o que era suposto ser encontrado ali. o que era suposto encontrar... lembrou-se do mocho:
algo que nunca teve...
a Árvore? era suposto dar algo a uma Árvore? mas como é que devia saber o que é que uma Árvore nunca teve???
explorou então a pequena clareira. seixos rolados brancos, uma depressão funda cortada no meio do chão.. um ribeiro antigo? alguma coisa castanha, com um ar de que já foi de pele a sobressair no meio das ervas... espera lá..
esgravatou a terra com os dedos.
um sapato? olhou para a frente, para as raízes da Árvore.. uma delas dividia-se em cinco galhos mais pequeninos, e a bifurcação era achatada... seria possível que...
correu para a frente do Carvalho. chamou de novo. e de novo. percebia agora o Que a movera ali. não o Porquê, mas isso não era essencial agora. sentiu-se aflita, com uma sensação de opressão crescente no peito. ajoelhou-se em frente à Árvore, sem saber realmente o que fazer.
olhou em volta.
não via nenhuma saída dali, e acima de tudo não via forma nenhuma de ajudar o Homem-Carvalho que ali jazia, imperturbável. sabe-se lá a espera interminável. as eras que havia passado ali sozinho.
sentiu-se a encher-se de profunda compaixão pelo Homem.
trepou por um dos pés e sentou-se naquilo que se apercebeu ser uma coxa, e abraçou-se ao tronco.
"pobre Árvore" murmurou "pobre Homem".
sentiu algo
húmido cair-lhe na testa.
olhou para cima.
a Árvore chorava!!!
e houve qualquer coisa naquele toque, alguma estranheza familiar que começou a fazer sentido. e então... e então... pôs-se em pé..